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A reconciliação como retorno à casa do Pai

27.03.2023 | 10 minutos de leitura
Igreja
A reconciliação como retorno à casa do Pai

Pe. Geovani Antonio Dias, M.I.

O tempo litúrgico da Quaresma é um grande convite da Igreja para celebrar a reconciliação com Deus e com os irmãos, em vista de uma frutuosa preparação para celebrar dignamente a Páscoa do Senhor.

O contexto atual, de extremas polarizações políticas, ideológicas e religiosas, favorece uma cultura do ódio, da vingança e da punição. Inclusive, no meio eclesial o entendimento do perdão fica relegado a um ato formal e ao cumprimento de um preceito. Assim, ele deixa de ser a celebração de um sacramento, ou seja, um encontro com o mistério insondável de um Deus misericordioso, e passa a ser uma lei estrutural. 

O desafio para a pastoral é o de resgatar o verdadeiro sentido da reconciliação, tanto para não cair em um laxismo extremo, onde não há mais necessidade do sacramento da reconciliação, quanto no rigorismo extremo, que condena, pune e massacra o pecador. 


A Bíblia fornece uma estrela polar nesta noite escura da humanidade e, por isso, precisamos fixar o olhar sobre ela. Esta não revela filosoficamente o mistério da reconciliação, mas pode nos oferecer belas páginas capazes de nos abrir a uma viagem na bondade e na misericórdia de Deus. 

Quando falamos de reconciliação, entendemos a existência de um pecado que feriu uma relação afetiva existente e que precisa ser restabelecida. O primeiro passo para essa reconciliação é a acusação. A Bíblia usa o termo hebraico rîb para expressar essa realidade. A rîb bíblica «é uma ação de caráter agressiva, empreendida de um sujeito (acusador) contra um outro (acusado), porque o primeiro se considera ofendido e defraudado nos seus direitos à razão de um comportamento incorreto (e, por isso, inaceitável) do segundo.» Interessa a nós compreender essa ação quando na Bíblia ela toma um procedimento jurídico, fundado sobre um direito, neste caso sobre as normas da Aliança. 


A acusação, nos termos bíblicos da rîb, só existe onde há um vínculo de recíproca pertença, da qual emanam direitos e deveres. Ela nasce na relação afetiva e amorosa entre as pessoas, visto que essa exige respeito, fidelidade, proteção e promoção do outro. É na relação de Deus com seu povo que essa realidade vem apresentada nos termos da Aliança. A relação de Deus com o seu povo espera uma reciprocidade, ou seja, o cumprimento da Aliança, uma vez que quando esta foi descumprida, surgiram os profetas que são a voz de Deus que acusa.

No entanto, essa acusação não é como a dos tribunais que, diante de um crime, imputam uma pena. Nas relações interpessoais ou na relação do povo com Deus, existe um vínculo afetivo profundo que a praxe da acusação rîb deseja defender ou restaurar.  

Quem acusa é desafiado a buscar a sabedoria de Deus, essa é a grande tarefa do profeta. Em Isaías 1,2-20 podemos ler em modo programático a dinâmica interpretativa da acusação do Senhor no confronto com seu povo. O ponto de partida da rîb de Isaías é a relação familiar: “Eu criei filhos e os eduquei, eles, porém se revoltaram contra mim” (Is 1,2). O profeta fala da essência de Deus, ou seja, de um Pai amoroso que dedica tempo, energia e todos os seus recursos para fazer crescer os filhos. “A metáfora paterna constitui um modo de evocar a aliança entre o Senhor e Israel; em outros textos proféticos o pacto é apresentado com a metáfora esponsal (Jr 2-3; Os 2,4-26; Ez 16 e 23 etc...).”

Mais adiante, Isaías vai ainda mais a fundo: “O boi conhece o seu proprietário e o asno o estábulo do patrão, mas Israel não conhece, o povo não compreende” (Is 1,3). O profeta deseja, no fundo, abrir os olhos do povo para compreender a diferença entre a racionalidade do amor paternal de Deus e a irracionalidade de se relacionar com Ele como se fosse um patrão. Abandonar a lei do Senhor é como cometer um ato animalesco, puramente instintivo, e pode ter sua origem na compreensão da lei de Deus apenas como normas dadas por um patrão que facilmente gera rebelião. A acusação, ao recordar a relação paternal que Deus estabelece com seu povo, retoma uma história de amor com a lei, não uma obrigação imposta. 

Podemos agora aprofundar a diferença entre a acusação que se faz no tribunal e a acusação nos termos bíblicos. No meio cível, quem denuncia é um órgão do poder público. Já na rîb, como estamos analisando, a denúncia tem um caráter de relação paternal, a palavra de acusação quer gerar uma mudança, por isso deve levar o culpado a uma reflexão. Para isso, precisa ser uma palavra que toque o coração. No tribunal, a denúncia quer condenar o culpado. Já na rîb o interesse é salvar quem se ama, salvar um membro de sua família. Diz Bovati: “O amor pelo outro é operado exatamente quando assume a forma da censura e da repressão.” O que se espera obter é a confissão do erro que, se operado com sabedoria e verdade, pode ser gerador da mudança de vida. Acusar com sabedoria não significa dissimular a gravidade dos fatos, mas recorrer a palavras carregadas de um amor verdadeiro. 


A sabedoria deve também recorrer ao desmascaramento do orgulho. Muito presente em nossa realidade humana, o orgulho mascara o pecado através da mentira e/ou da justificativa do erro. A tradição bíblica, para esse desmascaramento: ,“usa do recurso da ironia, que revela e esconde ao mesmo tempo; faz apelo a outras testemunhas, a recordações comuns como se o discurso viesse de outro; se serve dos discursos em parábolas, de contos fictícios.”

Um exemplo claro desta sabedoria é o profeta Natã, que sabiamente condena o pecado de Davi ao tomar Bersabéia, a mulher de Urias (cf. 2Sm 12,1-7). O profeta conta uma parábola a Davi, na qual enfatiza a gravidade de tomar aquilo que é do outro por puro prazer pessoal. Se seguimos a leitura do texto, encontramos a bela confissão de Davi: “Eu pequei contra o Senhor” (2Sm 12,13). A sabedoria divina encontra meios para se achegar ao coração de quem pecou, mas precisamos aprender a deixar de lado o espírito de vingança e de ódio. Quem acusa deve considerar que está contra o pecado e não contra o pecador, deseja fazer um bem à pessoa, salvar um irmão ou um filho. 


O acusador precisa também aprender a virtude da paciência, pois um pecado não se vence de uma vez por todas, mas por meio de um caminho gradual de amadurecimento da consciência.

José do Egito é um exemplo desta paciência. Ele não condena seus irmãos imediatamente quando os reencontra, mas empreende com eles um caminho de maturação gradual da consciência, fazendo com que entrassem dentro de si (cf. Gn 42,7-9;42,30;43,3). José faz aos irmãos uma acusação ameaçadora: “fez-se de estranho entre eles e fala duramente (...) dizendo: ‘Vós sois espiões!’ Viestes para ver os pontos indefesos do território” (Gn 42, 7-9; 42, 30; 43,3). José faz com que os irmãos, na prisão, diante de uma acusação, meditem sobre o crime deles e manifestem arrependimento por terem vendido o irmão como escravo. José é ao mesmo tempo severo e paciente em esperar, pois seu maior desejo era a reconciliação fraterna entre eles. Ele não exprimiu ódio diante dos irmãos, isso é comprovado pelo fato que quando age severamente, ele se comove chegando inclusive a chorar (cf. Gn 42,24; 43,30; 45,2).

É importante mencionar que a tradição bíblica reconhece que muitas vezes a denúncia com palavras de sabedoria sozinhas não bastam, por isso aparece a linguagem da cólera ou do castigo: “O Senhor corrige quem ama, como um Pai corrige o filho predileto” (Hb 12,6; Ap 3,19). No entanto, o castigo na rîb bíblica não segue a lei de talião, mas é moderada, mansa, capaz de exprimir misericórdia e compaixão. 

Com a acusação rîb, se espera da pessoa acusada uma resposta que, dentro do projeto de Deus, é também uma escolha entre a vida e a morte. A pessoa pode não querer reconhecer a verdade, mentindo, ou ter a atitude justa e salvadora da confissão da culpa.


A confissão abre portas a uma positiva conclusão do pecado que fragmentou a relação. Diz o salmista: “Quem confessa, diante do Pai ou a um irmão, sabe que as palavras do Pai ou do irmão não serão usadas para condenar, mas para a misericórdia” (Sl 103,10). Quando a confissão é verdadeira, ela conduz ao perdão que é capaz de reparar o mal empreendido e de recomeçar em um futuro novo. O verdadeiro arrependimento vem expresso em obras concretas de justiça, de honestidade e de amor. É exatamente isto que encontramos no evangelho de Lucas, onde o pecador Zaqueu, arrependido e perdoado pelo Senhor, decide dividir suas posses com os pobres e devolver quatro vezes mais do que roubou (cf. Lc 19,8). 

A reconciliação é o objetivo primeiro da rîb no contexto bíblico. Para Bovati a reconciliação “é o momento do encontro, quando os dois que estavam em conflito e se opunham com palavras e atos, reencontram a concórdia da verdade e são ambos artífices do ato de justiça.» Quando surge a verdade, brota naturalmente a reconciliação. 

Quem perdoa é livre, não faz isso como uma obrigação, mas porque tem um amor gratuito no coração e não pode deixar de perdoar. O perdão é um gesto criativo, por isso surge de Deus mesmo, visto que é Ele a plenitude da misericórdia e quem tem o poder de exercê-lo no mundo.

A Bíblia usa muitas metáforas para expressar esse ato divino do perdão: o banho de purificação; o cancelamento do débito; o fim da ira; a misericórdia; a salvação da vida daquele que estava morto (cf. Lc 15,24.32). Podemos dizer que Jesus é o cumprimento de todas as imagens bíblicas do perdão de Deus. Ele veio para cumprir plenamente a acusação rîb, no sentido bíblico, porque sua ação de misericórdia deseja conservar a vida do pecador, readmitir na comunhão fraterna quem errou (cf. Mt 9,12-13).


A imagem de José do Egito, que perdoa e reúne toda a família num abraço de perdão (cf. Gn 45,14), se cumpre no ensinamento de Jesus na parábola do filho pródigo quando o perdão é também apresentado com a imagem de um abraço (cf. Lc 15,23-24). O sacramento da reconciliação é, concretamente, esse mesmo abraço de perdão e de recomeço que só um Pai amoroso pode oferecer.

Precisamos, portanto, acreditar na reconciliação e buscá-la, pois o seu sentido último é salvar as relações, tanto em nível interpessoal, entre os irmãos, como da pessoa para com Deus. É tempo de voltar ao nosso Deus, de regressar à casa do Pai. 

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